sexta-feira, 18 de outubro de 2013

“O Papa da liberdade de espírito e da razão cordial”, de Leonardo Boff

Uma das maiores conquistas da pessoa humana em seu processo de individuação é a liberdade de espírito. Liberdade de espírito é a capacidade de ser ser duplamente livre: livre das injunções, regras, normas e protocolos que foram inventados pela sociedade e pelas instituições para uniformalizar comportamentos e moldar personalidades segundo tais determinações. E significa, fundamentalmente, ser livre para ser autêntico, pensar com sua própria cabeça e agir consoante sua norma interior, amadurecida ao largo de toda vida, na resistência e na tensão com aqueles injunções.
E essa é uma luta titânica . Pois todos nascemos dentro de certas determinações que independem de nossa vontade seja na  família, na escola, na roda de amigos, na religião e na cultura que moldam nossos hábitos. Todas estas instâncias funcionam como superegos que podem ser limitadores e em alguns casos até castradores. Logicamente, estes limites desempenham uma função reguladora importante. Pelo fato de o rio possuir margens e limites é que ele chega ao mar. Mas estes podem também represar as águas que deveriam fluir. Então se esparram pelos lados e se transformam em charcos.
As atitudes e comportamentos surpreendentes do atual bispo de Roma, como gosta de se apresentar, comumente chamado  de Papa, Francisco, nos evocam esta categoria tão determinante da liberdade de espírito.

Normalmente, o cardeal nomeado Papa logo incorpora o  estilo clássico, sacral e hierático dos Papas, seja nas vestimentas, nos gestos, nos símbolos do supremo poder sagrado e na linguagem. Francisco, dotado de imensa liberdade de espírito, fez o contrário: adaptou a figura do Papa a seu estilo pessoal, aos seus hábitos e às suas convicções. Todos conhecem as rupturas que introduziu sem a maior cerimônia. Aliviou-se de todos os símbolos de poder, especialmente, a cruz de ouro e pedras preciosas e o mantelo (mozetta) colocado aos outros, cheio de brocados e preciosidades, outrora símbolo dos imperadores romanos pagãos: sorrindo disse ao secretário que queria colocá-lo a seus ombros: “guarde-o porque o carnaval já acabou”. Veste-se na maior sobriedade, de branco, com seus sapatos pretos habituais e, por baixo, com sua calça também preta. Dispensou todas as facilidades atribuídas ao supremo Pastor da Igreja, desde o palácio pontifício substituído por uma hospedaria eclesiástica, comendo junto com outros. Pensa antes no pobre Pedro que era um rude pescador ou em Jesus que, segundo o poeta Fernando Pessoa, “não entendia nada de contabilidade nem consta que tinha biblioteca”, pois era um “factotum” e simples camponês mediterrâneo. Sente-se successor do primeiro e representante do segundo. Não quer que o chamem de Sua Santidade, pois se sente “irmão entre irmãos”, nem quer presidir a Igreja no rigor do direito canônico, mas na caridade calorosa.
Em sua viagem ao Brasil mostrou sem nenhuma espetacularização, esta sua liberdade de espírito: deseja como transporte um carro popular, um jeep coberto para locomoção no meio do povo, abraça crianças nas ruas, toma um pouco de chimarrão dos peregrinos, até trocar seu “solideo papal branco” da cabeça, por um outro, meio desengonçado oferecido por um fiel. Na cerimônia oficial de acolhida por parte do Governo, que obedece a um rigoroso protocolo, após o discurso, vai à presidenta Dilma Rousseff e a beija para estarrecimento do mestre de cerimônia. E muitos seriam os exemplos.
Esta liberdade de espírito lhe traz uma inegável irradiação feita de ternura e vigor, as carcaterísticas pessoais de São Francisco de Assis. Trata-se de um homem de grande inteireza. Tais atitudes serenas e fortes mostram um homem de grande enternecimento e que realizou uma significativa síntese pessoal entre o seu eu profundo e o seu eu consciente. É o que esperamos de um líder, especialmente religioso. Ele evoca ao mesmo tempo leveza e segurança.
Esta liberdade de espírito é potenciada pelo resgate esplêndido que faz da razão cordial. A maioria dos cristãos está cansada de doutrinas e é cética face a campanhas contra reais ou imaginados inimigos da fé. Estamos todos impregnados até à mêdula pela razão intelectual, funcional, analítica  e eficientista. Agora vem alguém que, a todo momento, fala do coração como o fez em sua fala na comunidade (favela) de Varginha ou na ilha de Lampedusa. É no coração que mora o sentimento profundo pelo outro e por Deus. Sem o coração, as doutrinas são frias e não suscitam nenhuma paixão. Face aos sobreviventes vindos de África, confessa: “Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de ‘padecer com’: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar”. Sentencia com sabedoria: “A medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como trata os mais necessitados”.
Por esta medida, a sociedade mundial é um pigmeu, anêmica e cruel.
A razão cordial é mais efetiva na apresentação do sonho de Jesus que qualquer doutrina erudita e tornará o seu principal arauto, o Francisco de Roma, uma figura fascinante que vai ao fundo do coração dos cristãos e de outras pessoas.
(*) Leonardo Boff acaba de sair Francisco de Assis e Francisco de Roma, Mar de Ideias, Rio 2013.


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